Espaço Acadêmico

Dissecção aórtica aguda

Textos Didáticos | Eduardo Keller Saadi | www.clinicasaadi.com.br | 2010


INTRODUÇÃO

A dissecção da aorta, que consiste na separação da túnica íntima da adventícia do vaso, é o evento grave que mais freqüentemente afeta a aorta. É aproximadamente 2 a 3 vezes mais freqüente que ruptura de aneurisma de aorta abdominal. Consiste basicamente de uma luz verdadeira, separada da luz falsa pela camada íntima. A dissecção pode terminar em uma nova ruptura na íntima ou em fundo cego.  

A progressão da doença pode levar a comprometer o fluxo sangüíneo na própria aorta ou na emergência de seus ramos, levando à oclusão ou má perfusão de orgãos ou extremidades. O enfraquecimento das camadas da aorta pode levar à ruptura ou formação de aneurismas. Atualmente o diagnóstico da patologia pode ser feito com o auxílio de vários métodos de investigação. Por apresentar manifestação clínica muito variada, que pode acometer diversos órgãos vitais, a dissecção da aorta é freqüentemente confundida com várias doenças agudas, retardando ou mesmo impedindo o diagnóstico em vida. O tratamento clínico e/ou cirúrgico na fase aguda altera significativamente a mortalidade.

PATOGÊNESE

Apesar do conhecimento de que vários fatores predisponentes estão associados a dissecção da aorta, existe mais de uma teoria para tentar explicar a ruptura inicial que acontece na túnica interna, levando-a ao afastamento da adventícia e à penetração do sangue por um novo plano na camada média, originando a falsa luz. O evento pode ser um hematoma intra-mural, provavelmente causado pela ruptura de um vaso vasorum, mas geralmente há um local de ruptura da íntima que desencadeia o quadro. A ruptura da íntima pode acontecer em qualquer segmento da aorta, mas mais freqüentemente localiza-se na aorta torácica, sendo cerca de 60-70% na aorta ascendente, 10 a 20% no arco aórtico e aproximadamente 20% são distais a emergência da artéria subclávia esquerda. A penetração do sangue no sítio primário faz com que esse fluxo progrida e disseque a camada média, formando as duas luzes na aorta, a verdadeira e a falsa. A progressão do sangue na falsa luz poderá terminar em fundo cego ou romper para a luz verdadeira, fenômeno chamado de reentrada, provocando uma descompressão da falsa luz, evento que melhora o prognóstico (Figura 1). No entanto, quando há uma ruptura na adventícia, isso resultará em ruptura da aorta, que geralmente acontece no segmento da aorta intra-pericárdico ou na aorta torácica descendente, levando ao óbito por tamponamento cardíaco ou exsanguinação.

Figura 1. Hematoma intra-mural

CLASSIFICAÇÃO

Duas são as classificações mais conhecidas para dissecção da aorta. A mais utilizada é a que foi preconizada por DeBakey (Figura 2), que reconheceu três tipos: I, II e III. Nos tipos I e II, a ruptura da íntima é na aorta ascendente. No tipo I, a dissecção estende-se além da aorta ascendente, enquanto no tipo II fica confinada à aorta ascendente. As dissecções do tipo III se originam na aorta torácica descendente, sendo do Tipo IIIa quando não progride além do diafragma, e do tipo IIIb quando estende-se além do diafragma. 
  

Outra classificação, proposta pelo grupo da Universidade de Stanford, vem sendo bastante utilizada. Nesta, quando a aorta ascendente está comprometida chama-se tipo A, independente do local de ruptura da íntima ou da extensão da doença; as dissecções que comprometem somente a aorta torácica descendente e/ou abdominal, sem o envolvimento da aorta ascendente, são chamadas de tipo B. Esta classificação é a mais prática pois é o envolvimento da aorta ascendente que está associado a um pior prognóstico.

Figura 2. Tipos de dissecção

INCIDÊNCIA/ETIOLOGIA

A incidência anual de dissecção de aorta é estimada em cerca de 5 casos por milhão; afeta mais freqüentemente homens que mulheres numa proporção que varia de 2:1 a 5:1; sendo mais prevalente na 5A. década de vida. Gravidez (metade das dissecções de aorta em mulheres menores de 40 anos acontecem no último trimestre ou no parto), assim como a Síndrome de Marfan são fatores de risco. Hipertensão arterial sistêmica está presente em cerca de 80% dos pacientes. Outras patologias como Síndrome de Turner, Ehlers-Danlos, coarctação de aorta, Síndrome de Noonan e válvula aórtica bicúspide estão também associadas à doença, principalmente em jovens. As dissecções distais acontecem mais freqüentemente em pacientes mais idosos.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

O fator mais importante no diagnóstico da dissecção aórtica é o alto índice de suspeição por parte do médico que presta o atendimento. A dissecção em 90% dos pacientes apresenta-se com dor torácica severa, com intensidade máxima logo na sua apresentação. Nas dissecções proximais a dor se inicia na região retroesternal e progride para a região interescapular a medida que a dissecção progride distalmente. Não raramente o paciente caracteriza a dor como “se alguma coisa estivesse rasgando por dentro”.

Podem ocorrer sinais de choque: extremidades frias, sudorese e vasoconstrição mas em 50 a 75% dos pacientes a pressão arterial encontra-se elevada. Hipotensão arterial importante é usualmente atribuída à ruptura. Diminuição ou ausência de pulsos pode ocorrer. A insuficiência aórtica de recente começo é um sinal importante nas dissecções proximais e se deve à perda de sustentação das cúspides valvares aórticas. Evidências de derrame pericárdico, pulso paradoxal ou tamponamento cardíaco predizem um mau prognóstico. Podem ocorrer complicações neurológicas como síncope, neuropatia periférica isquêmica e paraparesia ou paraplegia, por comprometimento da vascularização medular. Os achados físicos são muitas vezes inconsistentes e podem ser pobres para firmar o diagnóstico.

Artérias importantes podem ser obstruídas pela dissecção. Infarto agudo do miocárdio ocorre em 1 a 2% dos casos, geralmente na parede inferior, por dissecção da coronária direita. A circulação mesentérica assim como a de um ou ambos os rins pode ser comprometida, bem como a circulação dos membros, especialmente os inferiores, pode mimetizar uma oclusão arterial aguda embólica.
Outras manifestações incluem síndrome de Horner, pulsação esterno-clavicular, paralisia de cordas vocais, síndrome da veia cava superior, hemoptise, hematêmese e bloqueio cardíaco.

DIAGNÓSTICO

Os exames laboratoriais de rotina pouco ajudam. Leucocitose (entre 10.000-15.000) é comum; anemia leve pode acontecer em virtude de seqüestro de sangue na falsa luz. Transaminases elevadas e leve acidose metabólica podem ocorrer quando há síndrome de má perfusão. Eletrocardiograma e enzimas podem alterar em dissecções proximais, quando há comprometimento de fluxo na coronária direita, tornando muitas vezes difícil o diagnóstico diferencial com infarto agudo do miocárdio. 

O Rx simples de tórax pode ajudar. Em 90% dos pacientes há alguma anormalidade na silhueta cardíaca, em geral alargamento da aorta. Se alguma calcificação está presente no botão aórtico, a separação da borda interna da externa , maior do que 1 cm, é altamente sugestiva de dissecção. Derrame pleural pode tambem estar presente. 

Após a suspeita clínica da doença há a necessidade da confirmação diagnóstica por algum dos métodos de imagem que seguem: 
O ecocardiograma trans-torácico e trans-esofágico podem fazer o diagnóstico rapidamente. Podem facilmente mostrar insuficiência aórtica, derrame pericárdico ou tamponamento cardíaco, membrana de íntima na luz aórtica, e dilatação do vaso, além da avaliação da função ventricular esquerda. A sensibilidade e especificidade do eco trans-esofágico pode chegar a 93-100% e 96-100% para dissecções proximais e distais respectivamente. 

A tomografia computadorizada e a ressonância magnética são excelentes métodos diagnósticos, porém requerem mais tempo para serem realizados. A acurácia diagnóstica varia entre 90-100%. 

Apesar do avanço tecnológico a aortografia ainda tem uma posição importante como método auxiliar. Quando oclusão ou má perfusão de algum órgão ou membro é suspeitada a aortografia ainda é o método de escolha. 
O método diagnóstico de imagem mais importante nesta patologia, é aquele que é obtido mais rapidamente na instituição.

TRATAMENTO

Mais de 90% dos pacientes com dissecção aguda da aorta com envolvimento da sua porção ascendente que não são tratados cirurgicamente morrem nos primeiros 3 meses. A mortalidade em pacientes não tratados é superior a 50% nos primeiros dois dias, levando a uma estimativa de risco de morte de 1% por hora nas primeiras 24 horas. Em virtude da gravidade da patologia o tratamento clínico deve ser iniciado se houver suspeita do diagnóstico. O objetivo inicial é aliviar a dor, controlar a pressão arterial e tentar interromper o processo de dissecção.  

O manejo deve ser realizado em unidade de tratamento intensivo, com monitorização de todos os sinais vitais. A história e o exame físico devem ser realizados simultaneamente com a inserção das linhas venosas, catéter arterial e sonda vesical. A hipertensão e a freqüência de pulso arterial na aorta são os principais fatores responsáveis pela propagação e ruptura da dissecção. A redução farmacológica do “stress” na parede aórtica é vital, o que é feito com beta-bloqueadores intra-venosos (esmolol, propanolol). Nos pacientes que estão hipertensos associa-se o nitroprussiato de sódio em infusão contínua. A pressão sistólica deve ser mantida ao redor de 100 mmHg e a freqüência cardíaca em torno de 60 bpm. Após estabilização adequa-se o tratamento clínico e encaminha-se à cirurgia quando indicada.

Em geral, a presença de dissecções do tipo I e II (tipo A) e a insuficiência do tratamento clínico nas dissecções do tipo III (tipo B), incluindo dor ou hipertensão arterial incontrolável, evidência de progressão da dissecção, sinais de síndrome de má perfusão ou ruptura são indicações de cirurgia.
  

As dissecções agudas do tipo I e II (tipo A) devem ser consideradas emergência cirúrgica. Também quando há má perfusão, que pode afetar o coração, cérebro, medula, vísceras e extremidades devem ser consideradas emergências. Sinais irreversíveis, decomprometimento neurológico, más condições associadas a outras doenças graves podem ser contra-indicações a cirurgia.
  

O tratamento clínico se impõe com melhor resultado nas dissecções do tipo III (tipo B). A cirurgia fica reservada às complicações, ruptura, rápida extensão, isquemia de órgãos, dor persistente ou progressão da dissecção. A cirurgia endovascular está começando a ser uma alternativa para dissecções do tipo III. Temos utilizado a técnica endovascular para dissecções do tipo B complicadas (Figura 3). Analogamente à correção endovascular da disseção da aorta torácica, a Figura 3 representa a correção endovascular de um aneurisma de aorta abdominal.

Figura 3. Cirurgia endovascular de Aneurisma de aorta abdominal

Clique aqui para ver a animação da Cirurgia endovascular de Aneurisma de aorta abdominal.

A mortalidade cirúrgica nas dissecções proximais é cerca de 10%; já nas dissecções distais é cerca de 30%, enquanto o tratamento clínico é 20% para esta última e bem maior para as proximais. 

Após o tratamento da fase aguda os pacientes permanecem em risco de desenvolver complicações relacionadas à aorta. A cirurgia corrige apenas uma porção da aorta doente e em torno de 15 a 30% da mortalidade tardia é devida à ruptura de outro segmento da aorta.Por esta razão o acompanhamento dos pacientes, com controle rígido da pressão arterial e realização de exames de imagem periódicos, é mandatório para prevenir complicações futuras.

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